Uma vida por um amigo. Assim seria o romance que eu escreveria para
este cara, uma narrativa sobre ele e, simultaneamente, eu. Somos amigos por
gerações, parentes por afinidade, desde que nascemos. Sempre estivemos juntos.
Nossos pais eram amigos, todos eles psicólogos, éramos uma certa comunidade.
Brincamos aos 2 anos, antes dele passar uns 4 anos na França. Depois que ele
voltou, estamos juntos. Fizemos praticamente tudo-juntos nesta vida. Brincamos
muito, conversamos, aprendemos, pensamos e gozamos a vida. Foi Miojo, por conta
do cabelo, Marcoso, coso, zette, que sua irmã trazia da França e por fim
nanquim e kim, pra mim ficou kim. Preponderantemente i e também zen com ares de
chinês.
Uma das primeiras memórias que tenho são suas meias trocadas, cada
uma tinha uma estampa e ele não notava. Ou não se importava. Marca de sua
personalidade. Tivemos grupos vocais para apresentar em festas quando criança (Os
taiobas), viajamos muito para a praia e para o interior. Conversamos sobre tudo,
nossas paixões, as platônicas e as do corpo e sobre o cosmo. Compartilhamos o
pensar a vida no dia a dia. Certa vez, numa praia, um menino gari trabalhando
se aproximou e perguntou o que fazíamos. Eu disse que estudava literatura, as
histórias que as pessoas contam, Marquinhos respondeu que estudava filosofia. O
menino fez cara que não entendeu o tal de filosofia. Marquinho então continuou
perguntando ao menino o que é? O que é você? O que você pensa que é você? O seu
ser? O menino estranhou aquelas
indagações e partiu em disparada...
Um dos grandes ensinamentos que tive estando ao seu lado, se deu
quando sua mãe morreu. Tínhamos em torno de 13,14 anos. Sua mãe teve câncer, e
já depois de algum tempo, se encontrava no hospital ciente de que morreria.
Marquinhos passou com ela estes momentos finais. Quando nos encontramos ele
estava sereno. Eu não me continha com aquela injustiça divina e ele estava ali,
seguindo seguro. Horas depois conversamos e quando eu perguntei sobre o que ele
tinha pra si naquele momento, respondeu que havia conversado com sua mãe, que
era budista, e que ela estava bem. Ela dizia estar tranqüila pois ele era um
menino bom e criado.
Optamos também juntos pela arte. Que eu me lembre cursamos juntos
escolinha de futebol, kung fu, a universidade, mas o que de alguma maneira
sempre nos colocou juntos foi a arte. Vendo filmes, trocando livros, tocando
violão ou pensando e escrevendo poemas juntos. O consumo de maconha acompanha
este período que se inicia com a arte. Sempre estivemos juntos fumando e
cantando. Claro, sem muito rigor nos estudos, mas nos deliciávamos com as
canções. Todas nossas viagens tinham um violão. É verdade que pouco compusemos.
Marquinho me parece uma pessoa sem ambição. Zen no sentido de um certo
desapego, sem vaidade. Claro que ele tem lá suas composições, porém ele não se
mostrava apaixonado por compor taradamente. Não apega demais e também não
sofre. Poucas as vezes inclusive vi Marquinho sofrendo agudamente. Tampouco
brigar. Nós mesmo, discutimos, de leve, uma vez. Aprendi com esta estabilidade
dele.
Para o novo disco que a turma prepara, kim tem duas canções
maravilhosas, além de outras coletivas. A primeira é “Alucinado” onde ele conta
de uma forma beatlemaníaca uma viagem de ayahuasca com reflexões filosóficas. A
segunda é uma chanson française chamada “les choses de la vie” feita com o
Bruno Leal, que o kim é extremamente feliz nas imagens e na métrica da letra.
Agora, o que ele gosta, gosta mesmo, é de amar a mulher. Considerado
calado, ele sempre se exaltou ao ver ou conhecer uma garota. Naqueles momentos
víamos muito de sua inteligência. Conversava sobre qualquer assunto, bem e
confiante. Posso dizer que desenvolveu sua arte com as relações. Uma de suas
músicas clássicas neste sentido é “Samba para Joana”, onde ele conta no vai e
vem do samba a tristeza de uma paixão. Desde que conheceu a Carol, ele se
apaixonou. Fazia questão de estar na reunião que ela estaria. Hoje eles têm a
Leila, que retoma o nome de sua mãe tornando a roda da viva a girar.
Claro que o desejo pelo saber também sempre foi um ponto de encontro
forte. Tivemos grupos de leitura de Freud, lemos com os amigos peças do teatro
Grego. Tivemos o prazer com os Vagabundos Iluminados de publicarmos nossos
próprios livros de poesia e fomos uma pessoa só com o Miguel.
Um amigo, o amigo, a grande definição de amigo. O que vivemos
juntos. Talvez por este motivo ficamos tanto tempo lado a lado em silêncio.
Como diz o poema de Leminsk, chamei um amigo para um chá, ele veio, ficou meio
a esmo e ficou por isso mesmo. Sempre nos encontramos pelo próprio sabor do
encontro. Muitas vezes sem objetivo, só pelo simples desejo de estarmos juntos,
uma volta para comer um sanduíche e uma resenha do dia.