Afoxé: A Flor
de lótus do tambor
Desde que escutei a primeira vez um afoxé, ou
melhor seria dizer o ijexá?, me apaixonei. O souingue daquele som era, é, e será
sempre contagiante. Do tipo que leva o corpo instintivamente. O fato é que eu não
tinha consciência do que aquilo significava. Eu não entendia que se tratava de
um ritmo ou de uma derivação religiosa, algo sagrado. Com o tempo compreendi
que havia na síntese daquele ritmo-reza-estadodeespírito uma célula rítmica, o
conhecido: ta tum ta, que os regentes marcam com uma mão aberta entrecortando o
outro braço esticado. Hoje, sei que se trata de um cristal. Uma forma lapidada
pelo tempo e por diversos povos que se constitui em algo mágico.
Tamanha elaboração, que numa primeira impressão
pode não ser notada, passando por algo simples, despretensioso, é extremamente
delineada, clara e forte. Assim como poderíamos dizer de um poema de Manuel
Bandeira, de Hai Kais japoneses ou outros sons característicos de outras
culturas. Por trás dessa aparência metonímica do ixejá, estão as histórias de várias
culturas africanas, brasileiras, muita alegria e sofrimento condensados, algo
que poderíamos associar ao blues norteamericano. Ouso a dizer que de certa
maneira o ijexá mantém no Brasil algo que talvez o blues não tenha com tanta
clareza: a religiosidade. Ou quiçá seja só uma deturpação de como eu escuto o
blues hoje filtrado por um mercado de massa, coisa que ainda não acontece com
os afoxés.
De toda maneira, esta pequena grandiosa mágica
foi se tornando concreta pra mim quando fui pela primeira vez ao carnaval de
Recife. Fui com mais alguns amigos para pesquisar música, e, especial o
Quinteto Armorial, não como um
acadêmico, mas como um vivenciador. Lá pude ver um “desfile” de afoxés todos
sustentados pelo formato cristalino da célula tronco mística do ijexá. Nesta
noite conheci a “noite dos tambores silenciosos”, que é rezada em Yorubá. É
isso Pg? Depois numa loja de Cds, junto com o amigo e arquivista Marcos Braccini,
procuramos incansavelmente Cds para que pudéssemos levar conosco aquele astral
para nossas casas em Belo Horizonte. Não foi tarefa fácil, naquele ano de 2003.
Foi então que encontrei o primeiro disco com gravações de afoxés: o disco Afoxés
de Pernambuco(alafin oyó). Não sabíamos quase nada sobre a história e a cultura que ele
estava inserido, mas amávamos ficar escutando aquele toque gostoso que nos
remetia a canções de Gilberto Gil e Caetano Veloso.
Conto toda essa história para dizer que tudo
estava de alguma maneira inconsciente para mim. Um gosto adormecido que acordou
quando fui convidado pela Flora Rajão e pelo Rafa Gonçalves para integrar o
Pena de Pavão de Krishna. Um bloco belo horizontino que tinha como base o afoxé.
Salve o afoxé Ilê Odara. A partir dali, saquei que aquela força poderia ser
também nossa. Como alquimistas começamos a movimentar uma matéria que de alguma
maneira adormecia também em outros corações. Enriquecido pela relação que os
dois fizeram com a cultura indiana simbolizada numa pena de pavão.
Nos ensaios no Quilombo do Abacateiro
Oriental caiu minha ficha da beleza de versos como esses cantados por Clara
Nunes:
Tem um mistério
Que bate no coração
Força de uma canção
Que tem o dom de encantar
Seu brilho parece
Um sol derramado
Um céu prateado
Um mar de estrelas
Essa imagem de um sol derramado, céu prateado, que
pode ser um grupo de afoxé descendo uma ladeira e se confunde com a luz que
emana daquilo, é inesquecível. Também no Ppk (como carinhosamente ficou
conhecido o Bloco Pena de Pavão de Krishna) conheci a encantadora música Canto
de Oxum composta por Vinicius de Moraes, que conta a história de Oxum atualizando
o mito. Aos poucos, um visão do cosmo, outra que não a ocidental, por
influência do afoxé, foi me arrebatando. Sem que eu fizesse uma busca
consciente do caminho que me encontrei. Quero dizer, por exemplo, que a água
pra mim, depois desta experiência, tem potência de Oxum. Presente na água doce,
presente na água salgada. Nessa cidade todo mundo é d’oxum. Não é Raphael
Sales?
No ano de 2014, além da enxurrada que são as
composições e a presença do Gustavito conosco mais uma vez, também durante os
ensaios, tive epifanias com a música Muito Obrigado Axé de Carlinhos Brow. Uma
alegria muito grande, um espírito de gratidão misturado ao axé da Bahia. Joga
as armas pra lá. Essa força sagrada que o Afoxé tem nos alimenta, não só o
corpo como o espírito, se houver essa distinção corpo-espírito. Só não precisava
dizer que deus é brasileiro. Como prova o Pena de Pavão de Krishna, os deuses
são para além dos territórios. Por fim, só posso agradecer, desejar vida longa
ao Ppk e ao afoxé.