sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Argola dourada




O sonho sempre começou num palco vazio. Uma caixa preta vista da platéia. Da direita para a esquerda passava voando uma argola dourada. No início ela passava lentamente. O som que ela fazia era grave e contínuo. Vrum... passou mais uma vez. No decorrer da noite, o processo se tornava um acontecimento sem sentido, um pesadelo. Aos poucos a argola ia acelerando sua passagem pela cena sem parar.
Durante anos, aquele pesadelo me acompanhou. Eu só tive consciência dele na adolescência. Ou seja, eu sonhei aquele sonho diversas vezes, sofri noites inteiras, sensações horrorosas que prejudicaram meu sono e eu nem sequer tinha consciência daquilo.
Desde a minha descoberta daquele companheiro onírico, eu me peguei diversas vezes pensando nele. Já não havia tanto peso em lembrá-lo. Eu gostava um pouco. Achava muito surreal. Que era aquilo? Pra quê aquele sonho? Eu não encontrava dicas em nenhuma fonte de onde ele teria surgido. Não havia elementos para associá-lo ao meu dia a dia. De toda maneira, era claro pra mim as noites que aquele sonho me habitara. Eu não acordava nessas noites, mas elas eram conturbadas, eu dormia pior nelas. Já durante o novo dia, eu não podia me lembrar de nada, então o sonho parecia não influenciar minhas impressões. Eu não daria a ele um sentido, ou um porquê, eu só me encontrava cansado no dia. Talvez por isso, rememorar no pensamento aquela época, a época deste sonho, não era ruim.
Algumas vezes, numa mesa de bar ou jantar, eu contei contente este sonho, entendendo que estava ali um fato extremamente surreal, buraco onde nos desconhecemos, homens da multidão. Até que um dia, vendo o documentário Povo Brasileiro sobre a obra de Darcy Ribeiro, vi a imagem da argola. O capítulo é sobre os negros e a relação com a África. Provavelmente, o símbolo de algum orixá. Ao som de um berimbau ancestral, eu me iluminava. Estava ali uma imagem que minha mente produzira em mim por muitos anos. Era ela. Ela existia. Fiquei por longos dias impressionado com a descoberta. Agora, o sonho não podia ser considerado completamente surreal. Ele estava calcado numa letra, numa cultura, uma tradição gigantesca. De alguma forma eu fazia parte, eu um fragmento da grande África. A experiência como um todo ganhou mais alegria. Mais leve e gostosa se tornou aquelas lembranças dos sonhos. Numa performance do grupo 1banda3, criado com a amiga Brisa e o querido Felipe José, pude projetar a imagem numa cena.
Já mais recentemente, me interessei bastante pela literatura grega antiga, principalmente os antigos filósofos conhecidos como pré-socráticos. Dentre as várias teorias, uma me chamou a atenção. A teoria de Empédocles, pensador que também era médico e discursou sobre a existência do ar e sua passagem pelo nosso corpo, a inspiração e a expiração, fato que nos alimenta de energia. Em Da natura, em trecho citado por Aristóteles, ele diz que assim todos inalam e exalam: em todos há, sem sangue, canais de carne à superfície do corpo estendidos...
Simplesmente ar. Nós somos um corpo vazado de ar, um ser que respira e isso é muito. Não paramos por enquanto houver vida de inspirar e expirar. Não saía da minha cabeça uma imagem de um corpo perfurado e transpassado pelo vento. E dali surgia a força motriz, dali surgia a música. Um corpo flauta, como num mito indígena para o surgimento da música.
A respiração sempre foi uma ação que eu gostei de prestar atenção. Algumas vezes, tentei acompanhar cada pulsação como se eu estivesse dominado os atos involuntários dela. Aquilo era aflitivo. Como ator, dediquei dias da minhas vida fazendo exercícios vocais e tentando entender o diafragma. Ele é a cinta que move ar na nossa barriga. Cheguei a dedicar um capítulo inteiro de um livro de poemas para a respiração, função fundamental.
Um dia me encontrei um pouco febril e, por conta do nariz entupido, tive dificuldade para respirar, coisa normal de uma gripe. Numa tarde fria de inverno, resolvi ficar deitado com preguiça de qualquer coisa. Fiquei pensando nos meus canais respiratórios. Procurei sentir minuciosamente minha narina para compreender onde ela entupia e como eu poderia reverter a coriza que me incomodava. Dependendo do modo como eu me deitava, uma narina voltava a ter uma boa passagem de ar e a outra entupia. Comecei a pegar no sono e entrei num certo estado de vigília. Foi quando tive um insight, o segundo deste texto. 
A dificuldade de respirar me causava um mal estar muito familiar. De acordo com as variações que minha inspirações e expirações me impunham, eu sentia o peito cheio, pequenas dores na cabeça e cansaços corporais. Aos poucos me lembrei dos meus sonhos com a argola, não cheguei a sonhar completamente, mas o pouco que ela surgiu pra mim, na pulsação doentia que eu sentia, percebi que ela estava relacionada com minha febre. Logo recordei que várias vezes, nos períodos em que eu sonhei continuamente o sonho da argola, eu estava febril e um pouco gripado. Eu entendi que por algum motivo, que eu não consigo compreender bem, essas variações da respiração é que coordenavam os movimentos da argola em meus sonhos. Havia uma relação do desconforto estar presente sempre que o sonho vinha ou sempre que o sonho vinha, havia necessariamente um desconforto. De alguma maneira a argola fazia parte de minhas narinas e portanto da minha respiração.
O sonho há muito tempo não retorna e creio que ele continua misteriosamente intrínseco a mim. 

  

quarta-feira, 27 de maio de 2015

No mundo da rede imaginauta



Começarei a dizer deste grande amigo contemporâneo pela palavra-chave do curso no qual eu o conheci: imaginauta. A imagem de um internauta. A imaginação de um astronauta: GHustavo Távora. Um alucinético que com sua energia pernamundana inflava a todos que o escutavam. A partir da fotos, aplicativos simples e gratuitos de internet  e uma poética inventiva, ele criava blogs, instalações, performances. Tudo posto em rede e de maneira rizomática. GHuga se apresentava no ano de 2006 como uma realização de um mundo em rede possível. Viajando com suas oficinas por onde fosse, sempre também no plano de águas virtuais, ele se mostrou um cibernomade, um desterritorializado, num planeta mediado pelas imagens e completamente conectado para o bem, pela a proliferação de encontros e criações múltiplas. E todos que eram tocados por ele se tornavam também Imaginautas. Sou um destes.
                Aos poucos nos aproximamos e pude conhecer melhor aquela máquina criativa. Dedico este texto a desvendar os princípios que regem a engrenagem deste devir continuo. Em um dia pude ver GHuga explicando pelo três dispositivos criativos em sequência. E no decorrer de nossa amizade, que já chega a quase 10 anos, várias foram as vezes que dias como esse se repetiram. GHuga cria constantemente com a objetividade que o rodeia.
 No primeiro curso que realizei com GHuga, antes de nos tornarmos parceiros, ele me apresentou diversos dispositivos. O Horablogs é uma sessão de projeção, onde blogs são apresentados de uma forma cinematográfica e não como uma palestra didática. Em seguida conheci o Happinghours. Acontecimentos, happenings como happy hours, fins de tarde, em que a criatividade pulsante de GHuga e seu grupo vem a tona. Depois ele mostrou o flickrboomboom. Apresentações de fotografias projetadas diretamente do flickr. Foi o máximo, como diria ele. Cada pessoa abre seu flickr e, retirando a experiência do flickr da individualidade, cria um evento muito interessante e gostoso: infinito. E assim foi: CelulaMATER, Fishmob, Var_all, Pé-de-livros, Jard_imagens, Graffiti in the Rain, Com_Tato_íntimo, PIRACEMAcriativa, Fiquepeixe, Fotosinta-se e assim por diante. Neste momento ele deve estar criando um lance novo. Correlacionado a cada nome destes, Ghuga cria um imagem-conceito que já defini um caminho, com teor de blog. Como se a palavra, a imagem e a web não pudessem ser separadamente. Está ai um grande campo imagewordweb.  
                A criação de GHuga não parece surgir de uma teoria. Não existe uma metafísica por trás de seu pensamento. Ele vem de um pensamento concreto, no sentido elaborado por Lévi-Strauss. Da situação concreta, da palavra concreta, do objeto. Um artista concreto, verbivocovisual. Sem definições a priori, um índio cibernético. GHuga é um bricoleur. Junta palavras, neologismos, com imagens e tecnologias. E desta junção nasce um conceito novo, um acontecimento, uma performance, uma instalação. Nada tão estanque que não possa fluir. Aliás, esta é uma palavra muito usada por GHuga. Fluir. Nenhuma criação dessas deixa de fluir. Elas vibram de acordo com o contexto. Dependendo da necessidade cria-se um novo dispositivo na hora. GHuga entendeu por experiência própria a fluidez do signo. A superficialidade da linguagem. Navega sabendo que o mais profundo é a pele. Desliza uma palavra, uma imagem para um significado outro. Se quer uma flor verde, verdeja a flor. Uma arte tão total que se assemelha a vida num ritual ético-estético. Imaginautas são uma comunidade. Expansiva como sempre desejou GHuga que a fotografia fosse.

É difícil por isso definir o que é o trabalho dele. Artista? Educador? Poeta? Designer? Performance? Um tecnólogo? O fato é que ele perpassa por tudo, não se cristaliza. Esta sempre em devir e pregando a multiplicidade. Adoro quando ele diz que seu método é “na doida´s  methodology”. O início de sua formação está ligada ao ensino de língua inglesa, mas ele precisava ampliar o esquema sala de aula, pois via que o mundo era mais que quatroparedes, mais do que um esquema aulaexpositiva. Sabia que a escrita não pode ser mais só alfabeto e entendeu um mundo de grafias. Fotografia, Coreografia, Cinematografia... Queria que a pessoa se expusesse criativamente, aprendendo enquanto se descobre. Chegou ao osso do conhecimento: a criatividade. Jogou-se na linguaviagem pela beleza tal qual a vida fluindo.  E quando lhe perguntei o porquê dele não expor suas belíssimas imagens numa galeria, o que lhe daria mais rentabilidade e status de artista, por ser um formato mais convencional, ele respondeu que prefere não caminhar na direção óbvia, o caminho do poder que se instaura, nas Redes e nas Ruas. 

quinta-feira, 23 de abril de 2015

Amigos poetas à Kerouac

                Nós, os Vagabundos Iluminados, somos um grupo de escritores que tem sua poética visceralmente ligada às nossas experiências pessoais. Antes de poetas, nosso grupo se reuniu em torno de uma amizade juvenil que começou na década de 90 em Belo Horizonte. Um amigo apresentou um amigo ao outro e os gostos em comum pela literatura e pelas artes aproximou nossas vidas para a eternidade.
                 A tomada de consciência de que éramos um grupo de poetas veio, é claro, com nossa devoção a escrita como uma elaboração de nossas sensações e impressões do mundo em que vivemos e o que criamos para nós mesmos. Mas também surgiu a partir do conhecimento e a identificação coletiva com diversas estéticas e seus modos de agir. Podemos citar assim o amor pelo Rock n' Roll, a dose extraforte de Nouvelle Vague e a paixão pela literatura de Fernando Pessoa, assim como várias outras correntes estéticas.
               Embora não possamos determinar uma hierarquia de importância dentre essas várias estéticas citadas acima, uma em especial deve ser ressaltada neste projeto: a poesia desenvolvida pelo Movimento Beat nos Estados Unidos. As viagens nômades, as vivências lisérgicas e as atitudes subversivas do grupo formado por nomes como Jack Kerouac, William Burroughs e Allen Ginsberg mostraram uma escrita que se fez da própria vida destes escritores. Tamanha foi a identificação do nosso grupo com a vida/obra desses autores que passamos a nos autodenominarmos Vagabundos Iluminados em referência a um livro de Jack Kerouac chamado Dharma Bums, que foi traduzido para o português como Os Vagabundos Iluminados. No livro, o protagonista Ray Smith é jovem escritor e sua vida/obra será totalmente influenciada por Japhy Rider um jovem Zen-Budista que vive com o mínimo de dinheiro e é alheio a sociedade consumista.
                Assim, tínhamos encontrado algumas chaves para darmos aos nossos leitores. Nossa poesia, assim como a poesia Beatnik, é uma busca por algo a mais dos parâmetros estabelecidos e da sensibilidade poética que não pode ser tomada como a própria vida. Uma renúncia ao excesso, constantemente excessiva. Uma adesão total a rituais indígenas brasileiros, ao Zen-budismo e, ao mesmo tempo, reverenciando o rock mais poderoso e agressivo, sem achar que uma coisa é incompatível com a outra. Somos também antropófagos tropicalistas do samba e da poesia marginal, amantes de Baudelaire, Rimbaud e Homero. Entramos no rio que estão a corrente Beatnik e todas as outras que se jogaram no turbilhão da arte sem o preconceito das definições totalizantes, alheias a sociedade de consumo, querendo consumir de tudo material e espiritual, matando no peito a universalidade e traduzindo em uma poesia singular

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Uma dose de Martini




Era uma noite especial em Diamantina. Primavera de 2014. Depois do show “Noturno” de Marcos Braccini, eu reencontrava com um amigo: o Volum’s, mais tarde, denominado formalmente como Rafael Martini. Se não me engano fazem quase 10 anos que não passávamos uma noite juntos, claro, nesse tempo tivemos rápidos encontros esparsos, mas realmente fazia muito tempo que não exercitávamos nossa amizade.

Fomos para um bar extremamente afetivo para o Rafa, um bar musical chamado Meio Tom. O bar é de uma irmã torta dele, mas essa é uma longa história. Uso torta por conta da expressão usada na noite para definir rapidamente a relação. O importante é que eles se amam e tudo engrandecia aquele encontro. Momentos antes o Rafa havia dado uma entrevista para um documentário sobre o noturno de Braccini e dizia o quanto minha amizade com ele aproximou os dois. Tudo extremamente simbólico.

No passeio do Meio Tom bebiam várias pessoas em mesas na rua, quando ouvimos o piano no andar de cima. Eu, já um pouco embriagado, subi e logo voltei a ver aquelas mãos. Como num grande flashback cinematográfico, recordei das diversas vezes que vi aquelas mãos tocando. Primeiro foi o violão onde meus olhos pousaram sobre aquela mão. Praticamente iniciamos juntos na arte do violão. Mas o Rafa, claro, continuou estudando determinadamente. Uma cena marcante pra mim aconteceu numa noite em que ensaiávamos na casa dele no Jaraguá, nos idos de 1999, para a banda que tínhamos no Colégio Técnico onde estudávamos. O objetivo era tocar a música Haiti de Caetano e Gil. O Rafa trabalhava firme para tirar a canção e eu olhava sem entender bem os caminhos que ele percorria. No fim, depois de algumas idas e vindas, cantamos juntos emocionados. Nem sei se sabíamos a grandeza daquela letra.

Sempre foi mágico ver o Rafa tocando, não sou só eu que penso assim. A torcida do Atlético e do Cruzeiro, caso conhecessem sua música também concordariam comigo, mas não acho que é isso o que interessa pro Rafael Maritni. E sim o que Hermeto está fazendo, seu amigo Felipe José ou o Gustavito. Quem está compondo o quê, com que qualidade. O Rafaé antenado em tudo que acontece ao seu redor e com grande sensibilidade sabe dialogar. Sempre fiquei encantado como ele falando de músicas populares, canções simples, que eu não imaginaria que ele escutasse. Como um júri de festival da vida musical que analisa a harmonia e a melodia do que se produz por aí, mas sem competição, só deleite, intercâmbio e fascínio.

Destes 10 anos pra cá o cara arranjou uma sonora paisagem nova para BH. É um monstro entre aspas. Maestro da geração. Impressionista como um Debussy, um Ravel ou mais brasileiramente como Tom ou Noel. Gotas, ventos, sensações, preguiça de dar Sono, plainar. O Motivo do Rafa dá gosto. Engrandece o estado da música entre nós.

A mão que eu falava continuava tocando piano no Meio Tom. Naquele momento o Rafa tocava Led Zeppelin. No Quarter? Uma mística nos envolvia. O Led que ele tornou-se cover ainda no colégio. Cantava como ninguém. Quem diria. Abalava o saguão da escola. A primeira vez que ele apareceu pra nós foi cantando Bem que se quis, que na época bombava na voz de Marisa Monte. Claro clichê. Tínhamos 16 anos.

Mão que aos poucos, por conta de toda a sua história com o pai ausente, descobri negra. Mão grande, cheia e de dedos longos, com um formato que identifiquei em outros grandes músicos. Mão que tão ritmicamente sincopava, repicava ao piano tocando o Pato Preto, já com a banda Quebra-Pedra. Inclusive, este é um outro capítulo. Rafa e Loló. Leonora Weissmann. Se não me engano os dois se conheceram nesta época. A banda deles foi fazer uma residência na fazenda de minha família. Por lá talvez tenham composto, por lá Loló pintou árvores.

As mãos, então, passaram a mais uma música e eu já estava na sala de Tetê, a Terezinha mãe do Rafa. Lá lanchamos diversas vezes, muitas delas cantando. Ali também ensaiamos um grupo de música infantil que projetáramos. Criamos uma personagem que não esqueço: Mariana Pirata.

Lá pelas tantas da noite, a mão acelera no Jerry Lewis e as mesas cedem espaço, os corpos passam a dançar. Toda uma noite ao piano. A irmã torta só ajeitando as coisas para tudo sair o melhor possível com uma alegria com tudo. Naquela noite nossa história rememorada sem uma palavra, apenas música. Um grande filme dirigido por aquelas mãos que, graças a Deus, têm aquele coração maravilhoso para coordená-las.

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