quarta-feira, 19 de março de 2014


Afoxé: A Flor de lótus do tambor

Desde que escutei a primeira vez um afoxé, ou melhor seria dizer o ijexá?, me apaixonei. O souingue daquele som era, é, e será sempre contagiante. Do tipo que leva o corpo instintivamente. O fato é que eu não tinha consciência do que aquilo significava. Eu não entendia que se tratava de um ritmo ou de uma derivação religiosa, algo sagrado. Com o tempo compreendi que havia na síntese daquele ritmo-reza-estadodeespírito uma célula rítmica, o conhecido: ta tum ta, que os regentes marcam com uma mão aberta entrecortando o outro braço esticado. Hoje, sei que se trata de um cristal. Uma forma lapidada pelo tempo e por diversos povos que se constitui em algo mágico.

Tamanha elaboração, que numa primeira impressão pode não ser notada, passando por algo simples, despretensioso, é extremamente delineada, clara e forte. Assim como poderíamos dizer de um poema de Manuel Bandeira, de Hai Kais japoneses ou outros sons característicos de outras culturas. Por trás dessa aparência metonímica do ixejá, estão as histórias de várias culturas africanas, brasileiras, muita alegria e sofrimento condensados, algo que poderíamos associar ao blues norteamericano. Ouso a dizer que de certa maneira o ijexá mantém no Brasil algo que talvez o blues não tenha com tanta clareza: a religiosidade. Ou quiçá seja só uma deturpação de como eu escuto o blues hoje filtrado por um mercado de massa, coisa que ainda não acontece com os afoxés.

De toda maneira, esta pequena grandiosa mágica foi se tornando concreta pra mim quando fui pela primeira vez ao carnaval de Recife. Fui com mais alguns amigos para pesquisar música, e, especial o Quinteto Armorial,  não como um acadêmico, mas como um vivenciador. Lá pude ver um “desfile” de afoxés todos sustentados pelo formato cristalino da célula tronco mística do ijexá. Nesta noite conheci a “noite dos tambores silenciosos”, que é rezada em Yorubá. É isso Pg? Depois numa loja de Cds, junto com o amigo e arquivista Marcos Braccini, procuramos incansavelmente Cds para que pudéssemos levar conosco aquele astral para nossas casas em Belo Horizonte. Não foi tarefa fácil, naquele ano de 2003. Foi então que encontrei o primeiro disco com gravações de afoxés: o disco Afoxés de Pernambuco(alafin oyó). Não sabíamos quase nada sobre a história e a cultura que ele estava inserido, mas amávamos ficar escutando aquele toque gostoso que nos remetia a canções de Gilberto Gil e Caetano Veloso.     

Conto toda essa história para dizer que tudo estava de alguma maneira inconsciente para mim. Um gosto adormecido que acordou quando fui convidado pela Flora Rajão e pelo Rafa Gonçalves para integrar o Pena de Pavão de Krishna. Um bloco belo horizontino que tinha como base o afoxé. Salve o afoxé Ilê Odara. A partir dali, saquei que aquela força poderia ser também nossa. Como alquimistas começamos a movimentar uma matéria que de alguma maneira adormecia também em outros corações. Enriquecido pela relação que os dois fizeram com a cultura indiana simbolizada numa pena de pavão.
Nos ensaios no Quilombo do Abacateiro Oriental caiu minha ficha da beleza de versos como esses cantados por Clara Nunes:

Tem um mistério

Que bate no coração

Força de uma canção

Que tem o dom de encantar

Seu brilho parece

Um sol derramado

Um céu prateado

Um mar de estrelas

Essa imagem de um sol derramado, céu prateado, que pode ser um grupo de afoxé descendo uma ladeira e se confunde com a luz que emana daquilo, é inesquecível. Também no Ppk (como carinhosamente ficou conhecido o Bloco Pena de Pavão de Krishna) conheci a encantadora música Canto de Oxum composta por Vinicius de Moraes, que conta a história de Oxum atualizando o mito. Aos poucos, um visão do cosmo, outra que não a ocidental, por influência do afoxé, foi me arrebatando. Sem que eu fizesse uma busca consciente do caminho que me encontrei. Quero dizer, por exemplo, que a água pra mim, depois desta experiência, tem potência de Oxum. Presente na água doce, presente na água salgada. Nessa cidade todo mundo é d’oxum. Não é Raphael Sales?

No ano de 2014, além da enxurrada que são as composições e a presença do Gustavito conosco mais uma vez, também durante os ensaios, tive epifanias com a música Muito Obrigado Axé de Carlinhos Brow. Uma alegria muito grande, um espírito de gratidão misturado ao axé da Bahia. Joga as armas pra lá. Essa força sagrada que o Afoxé tem nos alimenta, não só o corpo como o espírito, se houver essa distinção corpo-espírito. Só não precisava dizer que deus é brasileiro. Como prova o Pena de Pavão de Krishna, os deuses são para além dos territórios. Por fim, só posso agradecer, desejar vida longa ao Ppk e ao afoxé.

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