O sonho sempre
começou num palco vazio. Uma caixa preta vista da platéia. Da direita para a
esquerda passava voando uma argola dourada. No início ela passava lentamente. O
som que ela fazia era grave e contínuo. Vrum... passou mais uma vez. No
decorrer da noite, o processo se tornava um acontecimento sem sentido, um
pesadelo. Aos poucos a argola ia acelerando sua passagem pela cena sem parar.
Durante anos,
aquele pesadelo me acompanhou. Eu só tive consciência dele na adolescência. Ou
seja, eu sonhei aquele sonho diversas vezes, sofri noites inteiras, sensações
horrorosas que prejudicaram meu sono e eu nem sequer tinha consciência daquilo.
Desde a minha
descoberta daquele companheiro onírico, eu me peguei diversas vezes pensando
nele. Já não havia tanto peso em lembrá-lo. Eu gostava um pouco. Achava muito
surreal. Que era aquilo? Pra quê aquele sonho? Eu não encontrava dicas em
nenhuma fonte de onde ele teria surgido. Não havia elementos para associá-lo ao
meu dia a dia. De toda maneira, era claro pra mim as noites que aquele sonho me
habitara. Eu não acordava nessas noites, mas elas eram conturbadas, eu dormia
pior nelas. Já durante o novo dia, eu não podia me lembrar de nada, então o
sonho parecia não influenciar minhas impressões. Eu não daria a ele um sentido,
ou um porquê, eu só me encontrava cansado no dia. Talvez por isso, rememorar no
pensamento aquela época, a época deste sonho, não era ruim.
Algumas
vezes, numa mesa de bar ou jantar, eu contei contente este sonho, entendendo
que estava ali um fato extremamente surreal, buraco onde nos desconhecemos,
homens da multidão. Até que um dia, vendo o documentário Povo Brasileiro sobre a obra de Darcy Ribeiro, vi a imagem da
argola. O capítulo é sobre os negros e a relação com a África. Provavelmente, o
símbolo de algum orixá. Ao som de um berimbau ancestral, eu me iluminava.
Estava ali uma imagem que minha mente produzira em mim por muitos anos. Era
ela. Ela existia. Fiquei por longos dias impressionado com a descoberta. Agora,
o sonho não podia ser considerado completamente surreal. Ele estava calcado
numa letra, numa cultura, uma tradição gigantesca. De alguma forma eu fazia
parte, eu um fragmento da grande África. A experiência como um todo ganhou mais
alegria. Mais leve e gostosa se tornou aquelas lembranças dos sonhos. Numa
performance do grupo 1banda3, criado com a amiga Brisa e o querido Felipe José,
pude projetar a imagem numa cena.
Já
mais recentemente, me interessei bastante pela literatura grega antiga,
principalmente os antigos filósofos conhecidos como pré-socráticos. Dentre as
várias teorias, uma me chamou a atenção. A teoria de Empédocles, pensador que
também era médico e discursou sobre a existência do ar e sua passagem pelo
nosso corpo, a inspiração e a expiração, fato que nos alimenta de energia. Em Da natura, em trecho citado por
Aristóteles, ele diz que assim todos inalam e exalam: em todos há, sem sangue,
canais de carne à superfície do corpo estendidos...
Simplesmente
ar. Nós somos um corpo vazado de ar, um ser que respira e isso é muito. Não
paramos por enquanto houver vida de inspirar e expirar. Não saía da minha
cabeça uma imagem de um corpo perfurado e transpassado pelo vento. E dali
surgia a força motriz, dali surgia a música. Um corpo flauta, como num mito
indígena para o surgimento da música.
A
respiração sempre foi uma ação que eu gostei de prestar atenção. Algumas vezes,
tentei acompanhar cada pulsação como se eu estivesse dominado os atos
involuntários dela. Aquilo era aflitivo. Como ator, dediquei dias da minhas
vida fazendo exercícios vocais e tentando entender o diafragma. Ele é a cinta
que move ar na nossa barriga. Cheguei a dedicar um capítulo inteiro de um livro
de poemas para a respiração, função fundamental.
Um
dia me encontrei um pouco febril e, por conta do nariz entupido, tive
dificuldade para respirar, coisa normal de uma gripe. Numa tarde fria de
inverno, resolvi ficar deitado com preguiça de qualquer coisa. Fiquei pensando
nos meus canais respiratórios. Procurei sentir minuciosamente minha narina para
compreender onde ela entupia e como eu poderia reverter a coriza que me
incomodava. Dependendo do modo como eu me deitava, uma narina voltava a ter uma
boa passagem de ar e a outra entupia. Comecei a pegar no sono e entrei num
certo estado de vigília. Foi quando tive um insight, o segundo deste
texto.
A
dificuldade de respirar me causava um mal estar muito familiar. De acordo com
as variações que minha inspirações e expirações me impunham, eu sentia o peito
cheio, pequenas dores na cabeça e cansaços corporais. Aos poucos me lembrei dos
meus sonhos com a argola, não cheguei a sonhar completamente, mas o pouco que
ela surgiu pra mim, na pulsação doentia que eu sentia, percebi que ela estava
relacionada com minha febre. Logo recordei que várias vezes, nos períodos em
que eu sonhei continuamente o sonho da argola, eu estava febril e um pouco
gripado. Eu entendi que por algum motivo, que eu não consigo compreender bem,
essas variações da respiração é que coordenavam os movimentos da argola em meus
sonhos. Havia uma relação do desconforto estar presente sempre que o sonho
vinha ou sempre que o sonho vinha, havia necessariamente um desconforto. De
alguma maneira a argola fazia parte de minhas narinas e portanto da minha
respiração.
O sonho há
muito tempo não retorna e creio que ele continua misteriosamente intrínseco a
mim.