sábado, 12 de setembro de 2009


Meu caro amigo, Oswald de Andrade. Escrevo do lugar onde convivem os chato boys para te dizer que aqui a coisa tem mudado. Hoje, estou aqui para falar dos índios, que, aliás, estudam na universidade, abrindo caminho para que esta seja realmente universal, de forma antropofágica. Você acredita que estamos, cada vez mais, estudando e deglutindo os povos indígenas, daqui a pouco eles nem vão ser chamados mais índios. Eu mesmo, só chamo os Maxakali de Maxakali. Amigo, você acredita que eles cantam versos, ou espíritos, que se chamam yãmîys, muito semelhantes com os da sua poética da câmera eye? Leia estes: O martim pescador pequeno está na árvore Ele desce no rio Ele entra na água Ele sai com um peixe Ele está parado comendo o peixe Ele corta caminho entre dois morros Ele vai rio abaixo Ele vai rio acima Ele voa entre o céu e a terra Ele desce no rio grande
Mas esses versos são ainda mais próximos de sua poética, porque são dançados e cantados pelos Maxakali, durante os rituais, com escritas iconográficas no corpo, incorporando o animal, a planta ou qualquer coisa que seja do afeto deles. Na verdade, eu nem sei se eles são Maxakali em tal circunstância. Sei que o Xunîm, espírito do morcego, come banana, porque gosta. O fato, é que eles corroboram sua idéia de que o espírito não concebe o espírito sem o corpo. São concretistas e acreditam nos sinais. É uma verdadeira festa dos espíritos e dos sentidos. São roteiros sendo realizados a todo o momento. E eles ainda têm bom humor. Acho que eles tiram dez, se a alegria é a prova dos nove.
Oswald, mas para ler os textos Maxakali, dando a profundidade que eles exigem, foi necessário, além de você, outras companhias. A principal delas, é uma escritora portuguesa que me arrebatou. Talvez você já a conheça e eu esteja chovendo no molhado. Ela é Maria Gabriela Llansol. Que força! Imagine você que ela encontrou no texto a paisagem. Isso mesmo, a página tornou-se tão página, que até podemos ver a árvore com a qual ela foi feita. Mas para isso foi preciso que outro português formulasse com maestria a seguinte relação: todo estado de alma é uma paisagem! E pronto, escrever é ampliar o mundo, ver com os olhos livres, nenhuma fórmula para a contemporânea expressão dos mundos, criar paisagens e estados de alma. As paisagens que nos impressionam. Veja você mesmo o que a Maria Gabriela escreveu: O falar e negociar, o produzir e explorar constroem, com efeito, os acontecimentos do Poder. O escrever acompanha a densidade da Restante Vida, da Outra Forma de Corpo, que, aqui vos deixo qual é: a Paisagem.
Escrever vislumbra, não presta para consignar. Escrever, como neste livro, leva fatalmente o Poder à perca de memória.
E sabe-se lá o que é um Corpo Cem Memórias de Paisagem.
A ambigüidade do cem com c é genial, não é? Você adoraria conversar com ela sobre a crise da filosofia messiânica. Fazer de nós vivos no meio do vivo, diz ela, destituindo a sua própria posição de autora. É um método bem antropofágico, pra te dizer a verdade. E algumas figuras são comuns em ambos os textos: Nietzsche, por exemplo. Ela joga com a autobiografia, redesenhando esta palavra tão desgastada e individualista, da seguinte maneira: autobiografia é por em linguagem(grafia) própria(auto) todo o Vivo(bio). Assim, cada ser tem em seu texto sua potência elevada radicalmente, sem hierarquias, a ponto de podemos falar que os corpos que ali estão são corpos escrevendo. Ao aproximarmos sua escrita com a dos indígenas fica nítido o quanto a vida comunitaria deles perpassa também a esfera da escrita. Como diria outro companheiro seu, Gilles Deleuze, em suma não há ponto de vista sobre as coisas, as coisas é que são os pontos de vista. Sabe aquela máxima sua: só me interessa o que não é meu? Poderíamos reescrevê-la: só me interessa ser o que não sou eu. Aí está o conhecimento. Uma outra perspectiva, como diria você, Poesia Pau-Brasil, como diria Viveiros de Castro, perspectivismo. Não se trata de multiculturalismo, mas de multinaturalismo, naturezas diferentes mudando os pontos de vista. Olha, e haja bebida sagrada, o cipó, para mudarmos tanto de corpo. De outra forma, a poesia anda oculta nos cipós maliciosos da sabedoria. Quando experimentei, fui também pro espaço, ou melhor, para a paisagem. Literalmente. E quantas são as línguas compondo a diversidade dessas paisagens! Aqui uns dias chovem e outros dias fazem sol, o que eu quero lhe dizer é que, por aqui, a coisa está preta. Os índios têm muita dificuldade de viver com a paisagem. Estão se virando, aprendendo o alfabeto para reconquistarem a terra. Diferindo da paisagem, têm que lutar pelo território. No território tudo está demarcado. Acabou a história de mapa mundi do Brasil. Por isso, está sendo tão importante a página/paisagem do livro, onde os espíritos, animais e bichos ficam guardados – como disse Isael Maxakali. A paisagem no livro indígena deve continuar, pela beleza que traz, mas seria tão melhor se o modus vivendi capitalista não destruísse tanto a paisagem no mundo... Por isso tudo, estou com você, caro Oswald: contra a realidade social, vestida e opressora, a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias, no matriarcado de Pindorama.
Ao Baco, Raf.*
*Carta publicada na revista Tabebuia nº1

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